Você já deve ter ouvido por aí que “depressão é falta de Deus”, né? Não é de hoje que os problemas psicológicos são atribuídos a forças ou seres sobrenaturais — presentes ou ausentes —, e, infelizmente, não vai ser amanhã que pararemos de fazer isso. Contudo, não duvido que podemos encurtar o “tratamento espiritual do sofrimento mental” com a boa – mas não tão velha — alfabetização científica.
Muita gente ainda não sabe, mas é possível estudar cientificamente a religiosidade. Por exemplo, já sabemos muita coisa sobre a origem da crença (e da descrença) em seres espirituais (Norenzayan & Gervais, 2013), e inúmeras pesquisas já foram realizadas a fim de testar se o nosso nível de envolvimento religioso se relaciona com a nossa saúde mental (cf. Bonelli & Koenig, 2013). Eu acredito que, se essas informações forem devidamente popularizadas — e se as pessoas compreenderem melhor não só a robustez, mas também o “espírito” do método científico —, estaremos em melhores condições de abandonar completamente a interpretação sobrenaturalista dos transtornos mentais.
Mas e aí: o que as pesquisas em Psicologia e Psiquiatria têm a nos dizer sobre a relação entre depressão e religiosidade? Conforme indicam as melhores revisões sobre o assunto, quanto mais religiosas são as pessoas, menos depressivas elas tendem a ser (Braam & Koenig, 2019; Bonelli, Dew, Koenig, Rosmarin & Vasegh, 2012; Bonelli & Koenig, 2013; Smith, McCullough & Poll, 2003). Embora alguns estudos não tenham encontrado isso — dentre os quais os que constataram o oposto disso —, esse é o tipo de resultado mais frequentemente reportado na literatura. Bom para os religiosos?
Nem tanto. Acontece que, na maior parte das vezes, a força da correlação entre religiosidade e sintomas depressivos é fraca (Smith et al., 2003). Para ser um pouco mais preciso, de acordo com um levantamento, quase 90% dos estudos analisados verificaram que essa relação ou é pequena, ou é insignificante (Bonelli et al., 2012). Para explicar isso com uma analogia, embora beber uma dose de café diariamente interfira em nossa hidratação, esse efeito é pequeníssimo quando comparado com o de ingerir água regularmente. Nesse sentido, diversos outros fatores também determinam a oscilação do nosso humor — como o sono, as relações interpessoais e a prática de atividades físicas (Pemberton & Tyszkiewicz, 2016) —, e alguns deles são bem mais relevantes do que a vida religiosa. Por isso, a ideia de que a origem da depressão é a falta de Deus é, para dizer o mínimo, tão exagerada quanto seria afirmar que a desidratação é causada pela falta de café. A propósito, se não fosse assim, como explicar o fato de que tantas pessoas de fé – incluindo líderes religiosos — passam por sérios episódios depressivos?
Para pôr mais artigos, digo, lenha na fogueira, é possível que o envolvimento religioso não se relacione com a depressão por meio de seu “conteúdo religioso”. Sendo um pouco mais claro, coisas como orar, ler a Bíblia e fortalecer nossa conexão com Deus parecem não ser “práticas antidepressivas” de grande valor (cf. Braam & Koenig, 2019). Em vez disso, variáveis não religiosas, como a participação de grupos, podem explicar por que pessoas mais religiosas — as quais costumam ser socialmente mais engajadas — tendem a ser um pouquinho menos depressivas. Essa ideia é amparada não só por estudos que testaram isso diretamente (e.g., Schnittker, 2001; Ysseldyk, Haslam & Haslam, 2013), mas, de forma indireta, também por pesquisas que compararam ateus com religiosos. “Afinal”, você poderia me perguntar, “pessoas que não creem em Deus tendem a ser mais depressivas, certo?”
Essa foi uma das questões que me motivaram a conduzir uma pesquisa recentemente, e eu tive a alegria de contar com a participação de 1788 brasileiros. Por mais paradoxal que pareça, as pessoas não religiosas — como as ateias, as agnósticas e as espiritualistas — podem ser a peça que faltava nas investigações referentes à relação entre religiosidade e saúde mental. Quer mais detalhes sobre essa história toda? Não deixe de assistir ao vídeo que publiquei recentemente sobre o assunto.
Este texto foi originalmente publicado por Universo Racionalista. Leia o original aqui.
Referências:
- BONELLI, R. M., & KOENIG, H. G. (2013). Mental disorders, religion and spirituality 1990 to 2010: A systematic evidence-based review. Journal of Religion and Health, 52(2), 657-673.
- BONELLI, R. M., DEW, R. E., KOENIG, H. G., ROSMARIN, D. H., & VASEGH, S. (2012). Religious and spiritual factors in depression: Review and integration of the research. Depression Research and Treatment, 1–8.
- BRAAM, A. W., & KOENIG, H. G. (2019). Religion, spirituality and depression in prospective studies: A systematic review. Journal of Affective Disorders, 257, 428–438.
- FREDERIKS, J. A., & ECCLES, J. S. (2005). Developmental benefits of extracurricular involvement: Do peer characteristics mediate the link between activities and youth outcomes? Journal ofYouth and Adolescence, 34(6), 507–520.
- NORENZAYAN, A., & GERVAIS, W. M. (2013). The origins of religious disbelief. Trends in Cognitive Sciences, 17(1), 20–25.
- PEMBERTON, R., & TYSZKIEWICZ, M. D. F. (2016). Factors contributing to depressive mood states in everyday life: A systematic review. Journal of Affective Disorders, 200, 103–110.
- SCHNITTKER, J. (2001). When is faith enough? The effects of religious involvement on depression. Journal for the Scientific Study of Religion, 40(3), 393–411.
- SMITH, T. B., McCULLOUGH, M. E., & POLL, J. (2003). Religiousness and depression: Evidence for a main effect and the moderating influence of stressful life events. Psychological Bulletin, 129(4), 614–636.
- YSSELDYK, R., HASLAM, S. A., & HASLAM, C. (2013). Abide with me: Religious group identification among older adults promotes health and well-being by maintaining multiple group memberships. Aging & Mental Health, 17(7), 869–879.