Deus não existe, e eu posso provar.
Sim, o título do texto soa psicodélico, mas garanto que a argumentação a seguir é sóbria. Pretendo desenvolver uma linha de raciocínio no sentido de provar que Deus inexiste, e que, para meu senso crítico, é mais que o bastante para dar a questão por encerrada. Sendo honesto, não apresentarei nada de revolucionário ou inteiramente original. A persuasão ou não de quem tirar uns minutos para ler essas linhas talvez dependa mais do tipo de espírito crítico cultivado pelo leitor do que dos argumentos apresentados. Feitas essas considerações, prossigamos.
O que é uma prova?
Em seu sentido lato, uma prova é um indício na direção de uma conclusão. Nessa acepção, há boas e más provas. Os registros fósseis são boas provas da evolução biológica, enquanto vídeos sem nitidez e fotografias embaçadas são provas ruins dos óvnis. Fósseis nos dão motivos sólidos para crer na evolução. Fotografias embaçadas nos dão motivos frágeis para crer em discos voadores. Uma boa prova é, pois, o mesmo que uma boa razão para crer (ou descrer) numa determinada proposição, hipótese ou teoria.
Num sentido bastante mais restrito, por prova estamos a falar de demonstração. Exemplos de provas, nessa acepção, são as demonstrações matemáticas e as demonstrações dedutivas da lógica formal. Uma prova dessa natureza é, se bem demonstrada, definitiva. Embora a matemática seja um instrumento capital da ciência, as provas científicas não são como as provas matemáticas, isto é, não são demonstráveis. Não há demonstrações da Evolução, do Big Bang, da Relatividade ou da preexistência dos dinossauros. Ainda que sejam matematizáveis (o que em si não é extraordinário, a astrologia também é matematizável), essas teorias não são demonstráveis, visto não serem teoremas. Mesmo que a matemática seja uma auxiliadora extraordinária para as teorias científicas de sucesso, a credibilidade delas se deve a virtudes não exatamente matemáticas, aqui vão algumas: possuem ampla eficácia preditiva, contêm fecundidade, que é a capacidade de fazer novas descobertas, relacionam fenômenos observáveis de maneira inteligível e profunda, permitem a sistematização de um domínio amplo de fatos naturais, além de terem mais força abdutiva que as teorias rivais, superando-as em poder explanatório.
Naturalmente, há quem duvide da Evolução ou do Big Bang, mas não há mais, hoje em dia, fundamentos para sustentar dúvidas racionais a respeito dessas teorias. A menos que surjam fortes contraprovas ou melhores teorias, a credibilidade da evolução biológica e do Big Bang está além de qualquer dúvida razoável, de maneira que podemos dizer, sem nenhum pudor, que está muito bem provado que os seres vivos evoluem darwinianamente e que o universo atual teve começo em algum tempo finito no passado, pela expansão de condições cósmicas originalmente muito quentes e densas.
Vale frisar que essa noção não demonstrável de prova é amplamente utilizada em outros domínios da vida humana que não a ciência, como no meio jurídico e até no domínio do senso comum. Mesmo não havendo procedimentos de demonstração matemática para estabelecer a culpa de um suspeito, é perfeitamente possível, a depender da qualidade das provas, estabelecer sua culpa para além de qualquer dúvida racional. Do mesmo jeito, é perfeitamente possível que eu prove, para além de qualquer dúvida racional, que fui xingado por uma ex-namorada numa rede social, desde que eu apresente prints, áudios e outros tipos de registros não adulterados.
É esse sentido de “prova”, racional, mas não demonstrável, de que nos ocuparemos doravante, e é o tipo de prova que vou apresentar contra Deus, em outras palavras; uma prova não matemática que é muito boa, ou bastante forte. Uma prova que, suponho, está além de qualquer dúvida razoável.
Provando inexistências
Antes de estabelecer nossa prova, faço mais um adendo. É estranhamente popular a ideia irrefletida de que não se pode provar inexistências (ou provar uma negativa). Trata-se de uma ideia de pedigree cartesiano, cuja formulação consiste no seguinte: se uma crença não pode ser rechaçada por algum procedimento inferencial infalível, teremos de lhe conceder algum benefício da dúvida, ainda que diminuto. Em outras palavras, se não é possível demonstrar matemática ou dedutivamente a falsidade de uma crença, temos de, no máximo, suspender juízo a seu respeito, jamais descartá-la em definitivo. Diga-se de passagem, a preferência de muitos ateus pelo eufemismo “Deus é improvável”, em vez de simplesmente “Deus não existe”, decorre dessa ideia. Que ela está errada não é difícil de ver.
Ocorre que, em condições adequadas, podemos tranquilamente provar inexistências, bastando estipular o que conta como evidência¹ contra a hipotética existência que queremos verificar. É perfeitamente possível, por exemplo, estabelecer a inexistência de um fenômeno em condições estritas que satisfaçam tal inexistência. Posso dizer que, numa dada porção de terra, não existem fósseis, ou que, em certas condições físicas, água em estado líquido não existe. Para isso, basta que se tenha em vista o que conta como evidência para falsear aquilo que se afirma haver naquele domínio. A propósito, é com essa estratégia que pretendo testar a existência de Deus e prová-la falsa.
Testando a existência de Deus
Sim, a existência de Deus é testável. Achou a afirmação estranha? Pois veja por si como tudo isso pode ser mais simples do que parece. Ora, quando formulamos a hipótese sobre a existência de alguma coisa, temos de estipular a sério que tipo de consequências observacionais sua existência implica. Se alguém supõe que em certa ilha ainda existem dinossauros, mas nada daquilo que a existência desses répteis deveria implicar é verificado (pegadas, ovos, rugidos, ou eles em pessoa) então, dessa ausência completa de evidências, podemos seguramente inferir que naquela ilha não há dinossauros. Claro, sempre é possível dizer que os dinossauros daquela ilha são especiais: além de invisíveis e silenciosos, a densidade exótica de seus corpos não lhes permite deixar pegadas. Mas isso já extrapola os padrões comuns da racionalidade científica, e mesmo da racionalidade prática comum no que respeita a formular e testar hipóteses, pois em nenhum contexto cognitivamente saudável levam-se a sério hipóteses tão formidavelmente mutáveis e escorregadias, a ponto de serem intangíveis a qualquer protocolo imaginável de teste. Ir contra isso é insistir no vício cartesiano denunciado no tópico anterior.
O ponto é que ninguém de bom senso agiria sequer como agnóstico quanto a tais dinossauros, simplesmente descartaria essa hipótese como besteira (não como algo “improvável”, mas como uma falsidade óbvia mesmo). Dito isso, fica difícil defender plausivelmente que há algo como Deus, especificamente, o deus da teologia cristã. Fica inclusive sem sentido dizer-se agnóstico a respeito desse deus, de outra maneira; fica sem sentido suspender o juízo. O ateísmo, ou seja, a negação ao invés da suspensão, é a posição mais razoável, visto que a hipótese teísta padrão é como a dos dinossauros da nossa ilha, uma suposição obscura que se modifica convenientemente a cada tentativa de investigá-la objetivamente, e por isso mesmo merece ser descartada como o devaneio ululante que é.
Mais precisamente, Deus merece ser abandonado porque sua existência deveria implicar uma pilha de coisas que, no entanto, não são verificadas. Por exemplo, deveria implicar que todos os aviões pousassem em segurança, que ninguém morresse de fome e de sede, que a taxa de estupros fosse igual a zero e, talvez, que não houvesse tantos boletos para pagar. Dado que nenhuma dessas evidências observacionais se confirma, logo, não pode existir aquilo que em tese as implicaria, e ficar remexendo essa hipótese para torná-la cada vez mais abstrata, a fim de salvá-la da refutação, só a deixa mais inverossímil.
Pronto, eis a prova prometida. Está satisfeito? Eu estou. No fundo, é só um argumento dedutivo simples e, sinceramente, não consigo entender por que alguém cognitivamente são não se dê por satisfeito com ele. Para minha decepção, porém, muita gente intelectualmente sã não se dá por vencida com um argumento assim. Por isso, nas seções seguintes, vou suplementar esse argumento com algumas considerações que fornecerão um contexto dentro do qual ele poderá soar convincente o bastante.
Meras possibilidades
Quem esperava uma prova de tipo demonstrável contra Deus, naturalmente se decepcionou com a que foi apresentada aqui. Isso se explica porque hoje em dia há muita gente contaminada por uma cultura intelectual bastante específica, muito bem exemplificada pelas discussões de certa tradição tecnicista na filosofia, terreno amplamente contaminado pelo vício cartesiano de que falei, e por um maneirismo escolástico vazio. Nesse terreno, é costume cultivar uma tolerância epistemológica demasiada com relação a hipóteses malucas, apenas por elas não serem demonstravelmente falsas. Assim, em vez de simplesmente excluir tais hipóteses pelo mero bom senso, seus adversários as levam suficientemente a sério a ponto de gastarem lábia filosófica enfadonha na tentativa de refutá-las com argumentos intrincados. É o que acontece com a hipótese de Deus.
O problema é que para cada argumento ardiloso contra Deus, é sempre possível inventar argumentos ardilosos em resposta. Para salvar Deus de argumentos desfavoráveis, os filósofos teístas costumam se desdobrar, buscando recursos na lógica modal e na famigerada linguagem dos mundos possíveis, inventando toda sorte de elucubrações tecnicistas, como é o caso do argumento ontológico modal de Alvin Plantinga e do argumento cosmológico Kalam. Não se tem notícia de que alguma dessas tentativas logrou êxito em provar adequadamente a existência de Deus, mas há quem conceda que ao menos conseguiram salvar o Altíssimo da refutação peremptória, o que, convenhamos, não é grande coisa se levarmos em consideração que podemos imunizar da refutação, com a parafernália conceitual certa, qualquer ideia maluca, bastando que ela seja logicamente concebível. Não obstante, os filósofos teístas costumam encarar esse feito como uma permissão intelectual para persistir na crença em Deus, já que, aparentemente, ela não pôde ser aniquilada de modo absoluto por uma prova infalível (demonstração). Mas, não querendo ser estraga-prazer, faço questão de lembrar que, como discutido há pouco, o fato de não dispormos de um procedimento inferencial que exclua uma crença de modo infalível não serve de justificativa racional para persistir nela. Ora, tampouco dispomos de um procedimento desses para excluir Odin ou o curupira, o que não significa que temos motivos para crer nessas coisas.
Além do mais, cientistas, juristas, detetives e pessoas em geral não se põem a presumir todas as possibilidades lógicas humanamente imagináveis antes de abandonar uma hipótese. Isso seria obsessão, não bom senso. E, particularmente, não entendo por que aos filósofos teístas é permitido ser obsessivo, a ponto de terem seu trabalho “investigativo” levado a sério em determinados nichos acadêmicos. Meu palpite é que a raiz do problema esteja na própria falta de integridade epistemológica desses nichos, cuja permissibilidade estimula a teorização estéril e a argumentação lúdica.
Tecnicismo escolástico
Se a mera possibilidade lógica de Deus existir satisfaz o senso crítico dos teístas, nada mais tenho a dizer, a não ser que aqueles que, como eu, rejeitam o modo cartesiano de encarar o conhecimento e a realidade tendem a não se impressionar com possibilidades lógicas², que mais não são do que fruto da capacidade de imaginar entidades, narrativas ou situações sem tropeçar em contradições lógicas ou conceituais.
Há quem veja valor nesse gênero academicista do debate entre ateus e teístas. Da minha parte, não vejo mais valor que aquele existente em puzzles matemáticos. O caráter escolástico desse debate o faz ser viciosamente infinito, pois para cada prova é possível oferecer uma contraprova, bastando estabelecer alguma premissa coringa, que, apesar de bastante discutível, costuma ser oferecida como auto-evidente, ou fazer ajustes conceituais criativos, socorrendo-se de alguma lógica modal. Particularmente, não vejo virtude nesse modo de teorizar, me parece intelectualmente permissivo, e até pueril — um tipo de racionalização conceitualmente sofisticada. Não há, nessa atividade intelectual, valor genuinamente cognitivo, exceto, talvez, pela possibilidade de ela clarear em que engrenagem esse ou aquele argumento técnico falha e que tipo de ajuste que, se feito, pode devolvê-lo ao jogo. Portanto, os ateus que desconhecem os maneirismos conceituais necessários para compreender esse debate “savantista” não devem se sentir intimidados, pois, para ser robusta, a racionalidade do ateísmo não depende de saber refutar essas elucubrações exóticas. Sigamos a sábia recomendação de Bertrand Russell, que, admitindo não ser possível excluir em absoluto determinadas “possibilidades” saídas das cabeças criativas dos filósofos, assevera não haver, contudo, qualquer razão para que não as atiremos bem longe.
Espero que à luz dessas considerações, fique claro por que considero mais que suficiente ao bom senso a prova que ofereci (que é basicamente um argumento baseado no milenar problema do mal), e por quê, do meu ponto de vista, não se deve ceder a essa conversa da “improbabilidade”, que seduz muitos ateus e, não raro, os leva ao agnosticismo.